Relatório publicado ontem pela Anistia Internacional deveria ser um terremoto em todos os jornais do planeta. Mas não está sendo. Por quê?
AAnistia Internacional publicou, neste dia 20 de setembro de 2018, um detalhado e chocante relatório intitulado “Esta não é forma de vida: A segurança pública e o direito à vida na Venezuela”.
A partir de dados da procuradoria geral do país, o relatório revela que, entre 2015 e junho de 2017, foram registradas 8.292 execuções extrajudiciais na Venezuela, ou seja, assassinatos perpetrados pelo Estado venezuelano mediante as suas forças de segurança, tanto militares quanto policiais.
Números e fatos
Execuções – Os assassinatos são assim distribuídos pelo levantamento:
2015: 1.777 execuções (10% do total de homicídios daquele ano)
2016: 4.667 execuções (22% dos homicídios)
2017 (só até junho): 1.484 execuções.
Perfil – A quase totalidade das vítimas (95%) é masculina. 60% tinham de 12 a 29 anos e moravam nas áreas mais pobres do país. O perfil das vítimas, segundo a Anistia Internacional, é sobretudo de trabalhadores, pais de filhos pequenos, mortos em casa e na presença da família.
Feridos – Além das mortes registradas, a Anistia Internacional ressalta que, para cada pessoa morta, sobrevivem de três a quatro pessoas feridas em decorrência da violência perpetrada pelo próprio Estado venezuelano. Com isto, estima-se que, em 2016, de 65 mil a 87 mil pessoas foram feridas pela violência armada do regime.
Índice de homicídios – Em 2016, a partir de um total de homicídios superior a 28 mil, a taxa venezuelana de 91,8 assassinatos para cada 100 mil habitantes só foi superada, em todo o planeta, pela de El Salvador, com 103 assassinatos para cada 100 mil habitantes. A média mundial é de 8,9.
Números subestimados – É provável que os dados sejam ainda piores, já que a Anistia Internacional não considera confiáveis os dados do governo venezuelano. Caracas nem sequer contabiliza as mortes cometidas pelas forças de segurança governamentais. O governo da Venezuela não publica estatísticas sobre homicídios desde 2005. O Ministério Público, até setembro deste ano, ainda não tinha divulgado nenhum dado sobre os homicídios cometidos no país em 2018.
Impunidade – O relatório da Anistia Internacional aponta que 98% dos casos de violações dos direitos humanos na Venezuela, bem como 92% dos crimes comuns, não são julgados no país. Esta realidade não se aplica somente aos homicídios: há também uma infinidade de denúncias não investigadas de abusos de autoridade, invasões e destruição de casas, privações de liberdade, tratamentos cruéis e ameaças.
Refugiados venezuelanos – A Anistia Internacional enfatiza que a Venezuela vive uma “séria crise de direitos humanos há vários anos”, o que está na raiz do “crescimento dramático” do número de pessoas que se veem forçadas a deixar o país: a ONU o calcula em 2,3 milhões desde 2014. A título de comparação, a mesma ONU estima em 4,8 milhões o total de refugiados da guerra na Síria desde 2011.
Responsabilidade do Estado – O relatório destaca explicitamente a responsabilidade do Estado venezuelano por essas mortes e pela violência em geral no país, ressaltando as medidas repressivas adotadas pelo regime de Maduro.
Comparação com outros regimes autoritários/ditatoriais na América do Sul
Se ficarmos só nos 2 anos completos que estão contidos nesse período abordado pelo relatório da Anistia Internacional (2015 e 2016), estaremos falando de 6.444 pessoas assassinadas em direta decorrência da repressão violenta praticada pelo governo de Nicolás Maduro.
É interessante comparar esses números assombrosos com os de outros regimes autoritários/ditatoriais que já estiveram em vigor em outros países da América do Sul.
Obviamente, não se trata de uma comparação que possa relativizar contextos: uma única dessas mortes, cometida pelo regime que fosse, já seria uma absoluta barbaridade, injustificável de qualquer ponto de vista. Trata-se apenas de uma comparação numérica, mas não por isso menos significativa – e o caro leitor conclua dela o significado que em consciência achar pertinente.
BRASIL
Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, instituída durante o governo de Dilma Roussef e que realizou um levantamento ao longo de dois anos e sete meses de trabalho, 424 pessoas foram assassinadas no Brasil por “agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado brasileiro“, entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, incluindo mortes cometidas no exterior. Atenção: não estamos falando apenas dos 21 anos de governo militar (1964 a 1985), mas de um total de 42 anos que abrangem quase duas décadas anteriores e mais três anos posteriores a esse período.
Os números foram levantados principalmente por expoentes da esquerda brasileira, que costuma apresentar-se como a mais interessada em revelar os fatos ocorridos sob o regime militar no país. Um detalhamento desses mesmos números consta no livro “Dos Filhos Deste Solo“, cujas mais de 600 páginas foram escritas pelo deputado petista Nilmário Miranda, secretário dos Direitos Humanos no governo de Luis Inácio Lula da Silva, e pelo jornalista Carlos Tibúrcio. Trata-se de uma co-edição da Boitempo Editorial e da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT.
É imprescindível observar que essas 424 mortes perpetradas ao longo de 42 anos estão incluindo não só execuções diretas, mas também vítimas de acidentes, pessoas que se suicidaram, pessoas que morreram no exterior e até casos de justiçamento, ou seja, assassinatos de militantes cometidos por outros militantes que atuavam no mesmo bando por considerá-los “traidores”. Dos 424 casos elencados, os comprovadamente assassinados são 293 – e, mesmo assim, incluem os mortos na Guerrilha do Araguaia, que envolveu pessoas armadas e dispostas a matar ou morrer. O levantamento realizado chega a detalhar a vinculação desses 293 mortos com os seus respectivos grupos ideológicos e/ou partidários: ALN-Molipo (72 mortes, sendo 4 por justiçamento); PC do B (68, sendo 58 no Araguaia); PCB (38); VPR (37); VAR-Palmares (17); PCBR (16); MR-8 (15); MNR (10); AP (10); POLOP (7) e Port (3).
Comparação Brasil – Venezuela
Ao se colocarem os números brasileiros e venezuelanos lado a lado, constata-se que a Venezuela dita “democrática” de Nicolás Maduro matou diretamente, em 2 anos, 15,2 vezes mais pessoas que o total de 424 mortos atribuídos ao Estado brasileiro em 42 anos. Se acrescentarmos os dados parciais de 2017, a Venezuela matou 19,5 vezes mais gente. E, se restringirmos as vítimas brasileiras às 293 comprovadamente assassinadas, observamos que a Venezuela matou, em 2 anos e meio, 28,3 vezes mais pessoas do que o Estado brasileiro em 42 anos. E estamos desconsiderando os números venezuelanos faltantes sobre o resto de 2017, todo 2018 e os anos anteriores a 2015.
Se extrapolássemos a média apenas do período de 2 anos completos que é citado no relatório da Anistia Internacional (2015 e 2016) e imaginássemos que a Venezuela mantivesse durante 42 anos o mesmo “comportamento democrático” que o seu governo atribui a si próprio atualmente, teríamos o congelante resultado de 270.648 pessoas assassinadas em nome da “democracia” socialista de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.
Nicolás Maduro entrega retrato de Hugo Chávez à então presidente brasileira Dilma Rousseff – Wikipedia (CC)
ARGENTINA
A ditadura civil-militar argentina (1976-1983) é unanimemente reconhecida como a mais sanguinária de toda a história da América do Sul – pelo menos até o momento, dado que a Venezuela de Nicolás Maduro aparenta que continuará sendo a Venezuela de Nicolás Maduro durante não se sabe quanto tempo.
As vítimas mortais ao longo dos 7 anos desse aberrante regime argentino chegam a cerca de 30.000 segundo as estimativas mais elevadas, calculadas por ONGs e organismos internacionais de defesa dos direitos humanos. Os militares argentinos, por sua vez, as calculam em torno de 8.000, enquanto o Estado argentino informa que recebeu pedidos de indenização de parentes de cerca de 10.000 desaparecidos.
Mesmo com todos os dados faltantes e com toda a inconfiabilidade dos números sob os governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, a Venezuela soma, em apenas 2 anos e meio, no mínimo 8.292 execuções extrajudiciais reconhecidas pela Anistia Internacional. Se os dados reais puderem ser consolidados (com números possivelmente superiores aos constatados até agora) e caso o regime venezuelano se prolongue pelos mesmos 7 anos que durou o regime argentino em questão, mantendo a mesma média de assassinatos extrajudiciais verificada pela Anistia Internacional no período abrangido pelo relatório recém-lançado, é tristemente plausível que Caracas consiga superar o terrível recorde mortífero de Buenos Aires.
CHILE
Levantamentos feitos por diversas organizações chilenas e estrangeiras estimam que o regime ditatorial de Augusto Pinochet (1973-1990) deixou no país em torno de 3.000 a 3.500 mortos e desaparecidos ao longo daqueles 17 anos. Sem que isto justifique de maneira alguma qualquer uma dessas mortes em quantidade ainda assim brutal, não deixa de ser imperativo constatar que se trata de menos da metade do total de pessoas assassinadas pelo Estado venezuelano em 2 anos e meio.
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A comparação entre os números indignantes desses quatro países irmãos não pretende relativizar a gravidade dos assassinatos perpetrados pelos regimes autoritários/ditatoriais de um passado não tão distante no Brasil, na Argentina e no Chile.
Pretende, isto sim, questionar a relativização dos assassinatos perpetrados pelo regime ditatorial da Venezuela neste preciso instante, debaixo dos nossos narizes.
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