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quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Congregação para a Doutrina da Fé enviada aos Bispos sobre nova redação da “pena de morte”

Carta aos Bispos
a respeito da nova redação do n. 2267
do Catecismo da Igreja Católica
sobre a pena de morte

1. O Santo Padre Francisco, no Discurso por ocasião do vigésimo quinto aniversário da publicação da Constituição Apostólica Fidei depositum, com a qual João Paulo II promulgou o Catecismo da Igreja Católica, pediu que fosse reformulado o ensinamento sobre a pena de morte, a fim de reunir melhor o desenvolvimento da doutrina sobre este ponto nos últimos tempos.[1] Este desenvolvimento apoia-se na consciência cada vez mais clara na Igreja do respeito devido a toda vida humana. Nesta linha, João Paulo II afirmou: «Nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se constitui seu garante».[2]

2. É nesta perspectiva que se deve compreender a postura em relação a pena de morte, afirmada largamente no ensinamento dos pastores e na sensibilidade do povo de Deus. Se, de fato, a situação política e social do passado tornava a pena de morte um instrumento aceitável para a proteção do bem comum, hoje a consciência cada vez maior de que a dignidade de uma pessoa não se perde nem mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos, a compreensão aprofundada do sentido das sanções penais aplicadas pelo Estado e o desenvolvimento dos sistemas de detenção mais eficazes que garantem a indispensável defesa dos cidadãos, contribuíram para uma nova compreensão que reconhece a sua inadmissibilidade e, portanto, apela à sua abolição.

3. Neste desenvolvimento, o ensinamento da Carta encíclica Evangelium vitae de João Paulo II é de grande importância. O Santo Padre incluiu entre os sinais de esperança de uma nova civilização da vida «a aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de morte, mesmo vista só como instrumento de “legítima defesa” social, tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir».[3] O ensinamento da Evangelium vitae foi proposto na editio typica do Catecismo da Igreja Católica. No mesmo, a pena de morte não se apresenta como uma pena proporcional à gravidade do delito, mas justifica-se somente se fosse «a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor», mesmo se de fato «os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes» (n. 2267).

4. João Paulo II interveio também em outras ocasiões contra a pena de morte, apelando seja em relação ao respeito à dignidade da pessoa quanto aos meios que a sociedade possui hoje para se defender do criminoso. Assim, na Mensagem natalícia de 1998, ele esperava «no mundo o consenso quanto a medidas urgentes e adequadas … para acabar com a pena de morte».[4] No mês sucessivo, nos Estados Unidos, ele repetiu: “Um sinal de esperança é constituído pelo crescente reconhecimento de que a dignidade da vida humana nunca deve ser negada, nem sequer a quem praticou o mal. A sociedade moderna possui os instrumentos para se proteger, sem negar de modo definitivo aos criminosos a possibilidade de se redimirem. Renovo o apelo lançado no Natal, a fim de que se decida abolir a pena de morte, que é cruel e inútil”.[5]

5. O esforço em comprometer-se com a abolição da pena de morte continuou com os sucessivos Pontífices. Bento XVI chamou «a atenção dos responsáveis da sociedade para a necessidade de fazer todo o possível a fim de se chegar à eliminação da pena capital».[6] E sucessivamente desejou a um grupo de fiéis que «suas deliberações possam encorajar as iniciativas políticas e legislativas, promovidas em um número crescente de países, a eliminar a pena de morte e continuar os progressos substanciais realizados para adequar a lei penal tanto às exigências da dignidade humana dos prisioneiros quanto à efetiva manutenção da ordem pública».[7]

6. Nesta mesma perspectiva, o Papa Francisco reiterou que «hoje a pena de morte é inadmissível, por mais grave que seja o delito do condenado».[8] A pena de morte, quaisquer que sejam as modalidades de execução, «implica um tratamento cruel, desumano e degradante».[9] Deve também ser recusada «por causa da seletividade defeituosa do sistema penal e da possibilidade de erro judicial».[10] É neste horizonte que o Papa Francisco pediu uma revisão da formulação do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte, de modo que se afirme que «por muito grave que possa ter sido o delito cometido, a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa».[11]

7. A nova redação do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica, aprovada pelo Papa Francisco, situa-se em continuidade com o Magistério anterior, levando adiante um desenvolvimento coerente da doutrina católica.[12] O novo texto, seguindo os passos do ensinamento de João Paulo II na Evangelium vitae, afirma que a supressão da vida de um criminoso como punição por um delito é inadmissível, pois atenta contra a dignidade da pessoa. Tal dignidade não se perde nem mesmo depois de ter cometido delitos gravíssimos. Chega-se também a essa conclusão levando em conta a nova compreensão das sanções penais aplicadas pelo Estado moderno, que deve antes de tudo, orientar-se para a reabilitação e reinserção social do criminoso. Enfim, dado que a sociedade de hoje possui sistemas de detenção mais eficazes, a pena de morte é desnecessária como proteção da vida de pessoas inocentes. Certamente, permanece o dever do poder público de defender a vida dos cidadãos, como sempre foi ensinado pelo Magistério e confirmado pelo Catecismo da Igreja Católica nos números 2265 e 2266.

8. Tudo isso mostra que a nova formulação do n. 2267 do Catecismo expressa um autêntico desenvolvimento da doutrina, que não está em contradição com os ensinamentos anteriores do Magistério. De fato, tais ensinamentos podem ser explicados à luz da responsabilidade primária do poder público em tutelar o bem comum, num contexto social em que as sanções penais eram compreendidas diversamente e se davam num ambiente em que era mais difícil garantir que o criminoso não pudesse repetir o seu crime.

9. Na nova redação, se acrescenta que a conscientização sobre a inadmissibilidade da pena de morte cresceu «à luz do Evangelho».[13] De fato, o Evangelho ajuda a compreender melhor a ordem da criação que o Filho de Deus assumiu, purificou e levou à plenitude. O Evangelho também nos convida à misericórdia e à paciência do Senhor, que oferece a todos, tempo para se converterem.

10. A nova formulação do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica quer impulsionar um firme compromisso, também através de um diálogo respeitoso com as autoridades políticas, a fim que seja fomentada uma mentalidade que reconheça a dignidade de toda vida humana e sejam criadas as condições que permitam eliminar hoje o instituto jurídico da pena de morte, onde ainda está em vigor.

O Sumo Pontífice Francisco, na Audiência concedida ao subscrito Secretário no dia 28 de junho de 2018, aprovou a presente Carta, decidida na Sessão Ordinária desta Congregação no dia 13 de junho de 2018, e ordenou a sua publicação.

Dado em Roma, na Sede da Congregação para a Doutrina da Fé, no dia 1º de agosto de 2018, Memória de Santo Afonso Maria de Ligório.

Luis F. Card. Ladaria, S.I.
Prefeito

+ Giacomo Morandi
Arcebispo Titular de Cerveteri
Secretário

Notas
[1] Cf. Francisco, Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização (11 de outubro de 2017): L’Osservatore Romano (13 de outubro de 2017), 4.

[2] João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae (25 de março de 1995), n. 9: AAS 87 (1995), 411.

[3] Ibid., n. 27: AAS 87 (1995), 432.

[4] João Paulo II, Messagem Urbi et Orbi por ocasião do Santo Natal (25 de dezembro de 1998), n. 5: Ensinamentos XXI,2 (1998), 1348.

[5] Id., Homilia no Trans World Dome de St. Louis (27 de janeiro de 1999): Ensinamentos XXII,1 (1999), 269; cf. Homilia da Missa na Basílica de Nuestra Señora de Guadalupe na Cidade do México (23 de janeiro de 1999): «Deve haver um fim para o recurso desnecessário à pena de morte»: Ensinamentos XXII,1 (1999), 123.

[6] Bento XVI, Exort. Apost. Pós-Sinodal Africae munus (19 de novembro de 2011), n. 83: AAS 104 (2012), 276.

[7] Id., Audiência geral (30 de novembro de 2011): Ensinamentos VII,2 (2011), 813.

[8] Francisco, Carta ao Presidente da Comissão internacional contra a pena de morte (20 de março de 2015): L’Osservatore Romano (20-21 de março de 2015), 7.

[9] Ibid.

[10] Ibid.

[11] Francisco, Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização (11 de outubro de 2017): L’Osservatore Romano (13 de outubro de 2017), 5.

[12] Cf. Vincenzo di Lérins, Commonitorium, cap. 23: PL 50, 667-669. Em referência a pena de morte, tratando sobre as especificações dos mandamentos do Decálogo, a Pontifícia Comissão Bíblica falou em “refinar” as posições morais da Igreja: «No curso da história e com o desenvolvimento das civilizações, a Igreja também refinou as próprias posições morais referentes à pena de morte e à guerra, em nome de uma reverência pela vida humana que ela acalenta sem cessar meditando a Escritura, reverência que toma sempre mais a cor de um absoluto. O que subentende essas posições aparentemente radicais é sempre a mesma noção antropológica de base: a dignidade fundamental do ser humano criado à imagem de Deus» (Bíblia e moral. Raízes bíblicas do agir cristão, 2008, n. 98).

[13] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, n. 4.

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