A
Semana Santa nos faz reviver a paixão e a morte de Jesus. Não somos
meros espectadores desse drama, centro de toda a história humana.
Preparados pela Quaresma, ano após ano, nos é proposta uma verdade que o
mundo procura, em vão, esquecer. Trata-se do sofrimento: sua
importância e sua função na vida de cada um e da sociedade. Antes de
tudo, devemos ao sacrifício do Justo por excelência todo o bem e cada
momento feliz de nosso peregrinar no tempo.
Certamente
muito difícil, contando com as forças naturais, aceitar a visão cristã
da realidade. O ambiente que nos envolve está saturado de poderosos
fatores que contrariam, formal e fortemente, os valores cristãos que nos
vêm do Calvário. Assim, a busca, a qualquer preço, do prazer, da
felicidade terrena, fascina o homem e serve de obstáculo à afirmação da
identidade com Cristo, divulga-se mesmo uma visão distorcida de
cristianismo onde a morte é a cessação de todo sofrimento terreno que
nos é apresentada no Tríduo Sagrado da Semana Santa.
Importa
valorizar a ascese, que nos une a Jesus padecente, com o objetivo de
reprimir a desvairada aspiração ao gozo dos sentidos e meio de
aperfeiçoamento de nossa vida espiritual.
Uma
conseqüência imediata, por paradoxal que seja, é o encontro da alegria.
São Paulo corrobora a afirmativa, com suas palavras aos Colossenses:
"Alegro-me nos sofrimentos, suportados por vossa causa" (1,24).
Essa
perspectiva muda profundamente nossa concepção da vida. Diante do
natural desejo do bem-estar material - evitando ou curando as dores -
surge a aceitação do sofrimento, que nos chega involuntariamente.
Movidos pela graça de Deus, nós o acolhemos em espírito de fé. Tais
ensinamentos nos vêm do drama que esses dias da Semana Santa nos
recordam.
Além
desses limites, nosso olhar se dilata. Devemos cumprir mais fielmente
os deveres cristãos, para fortalecer nossa identidade com o Cristo
sofredor. Ele veio nos remir do pecado e esta é a causa última dos
padecimentos. Logo depois de criado, o homem estava isento de qualquer
pena. Ao ferir a natureza em seu íntimo, introduziu a desordem que se
revela na presença do sofrimento do nascer até a morte. Graças ao
Salvador, obtivemos extraordinária possibilidade de transformar o fruto
da desobediência a Deus em valioso instrumento de santificação.
A
Semana Santa, especialmente o Tríduo Sagrado, cada ano nos ajuda a
repensar nossa vida, a refletir sobre a dor, tendo diante dos olhos o
drama do Calvário, e as últimas ações que levaram o Salvador à cruz.
Enquanto
vivemos em um ambiente hedonista, premido pela infrene busca do prazer,
pelo que nos pode proporcionar satisfação dos sentidos, as cerimônias
litúrgicas ajudam a praticar essa verdade cristã: seguir os passos de
Cristo sofredor, para acompanhá-lo nas alegrias da Ressurreição!
A
11 de fevereiro de 1984, o papa João Paulo II publicou uma Carta
Apostólica denominada Salvifici doloris, sobre "O sentido cristão do
sofrimento humano". Ela proporciona uma excelente leitura para esses
dias, nos quais participamos da vida de Salvador padecente.
Entre
outros benefícios, "oferece a possibilidade de reconstruir o bem no
próprio sujeito que sofre" (Idem, nº 12). Impressiona na pregação do
Mestre que ele não tenha ocultado as conseqüências dolorosas dos que a
ele se consagram, ou simplesmente aderem à sua doutrina. Falou
claramente: "Se alguém quer vir após mim (...) tome cada dia a sua cruz"
(Lc 9,23). Previu muitas dificuldades aos que o seguissem: "Sereis
arrastados diante dos tribunais e açoitados nas sinagogas, e
comparecereis diante dos governadores e reis por minha causa, para dar
testemunho de mim diante deles" (Mc 13,9).
Todo
esse aspecto negativo, que fere nossa natureza, existe em função de
algo extremamente elevado e útil, que ultrapassa toda a perspectiva
natural, terrena: a dignificação do sofrimento.
Essas
considerações e outras do mesmo gênero, devem estar em nossa mente, no
coração de cada um de nós, nestes dias santificados pela celebração da
paixão do Senhor. Vibramos com a entrada triunfal em Jerusalém. Logo
adiante, sofremos com a prisão, a flagelação, a via crucis, a morte e
exultamos com a ressurreição. Passa por nossa memória a fraqueza dos
apóstolos, a coragem das mulheres ao pé da cruz, a arrogância de
Herodes, a pusilanimidade de Pilatos, o ódio de grupos de judeus, os
personagens da Via Sacra, a lucidez do centurião que descobre a
divindade do condenado, a diferença entre ladrões igualmente
crucificados... A grandeza dos indizíveis sofrimentos, em contraposição
com os nossos pecados... Todo este cenário nos propicia uma profunda
reflexão. Isto pode ser exatamente aplicado à vida espiritual, à
fidelidade às determinações de Deus e da Igreja. Se não houver de nossa
parte, como fiéis, uma decisão de seguir, não a própria vontade e
tendências, mas as prescrições que o Magistério nos propõe, em nome de
Deus, consideremos terem sido em vão, para nós, tanta dor e sofrimento.
Cristo morreu por obediência. Obediência é a grande virtude da Semana
Santa.
Ainda
hoje há os que participam de suas dores, assistem às cerimônias, vivem o
drama da paixão, no sábado se recolhem no silêncio da sepultura do
Senhor. Enquanto isto, continuam muitos crucificando-o. Já Pascal dizia:
"Jesus estará em agonia até ao final dos tempos".
E a cidade é o reflexo desses cristãos. Muda de aspecto ou continua como se nada houvesse acontecido.
Somos
um "pequeno rebanho". No entanto, ele é o fermento que deve levedar
toda a massa. Recordemos os últimos anos do papa João Paulo II. Deus
permitiu que ele experimentasse o sofrimento e com dignidade o
apresentou ao mundo.
Dom Eugenio Sales
Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro
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